"Mekukradjá Obikàrà: com os pés em dois mundos."

Sobre a passagem de meu companheiro, o tempo, e os ciclos de vida-morte-vida.

Há quinze dias estou nesse processo de assimilação. Dezesseis. Quase vinte. É cedo para escrever? É tarde pra registrar os detalhes? Como entender esses recortes que estão em minha cabeça? Como equilibrar essa vida nova que surge a partir de toda essa mudança?

Mais alguns dias se passaram.
E eu ainda estou aqui.

Era um dia sol cósmico amarelo, kin 260, e eu ouvi sobre estímulo e inibição. Pressão, inflação (do ato de inflar-se). Acolhimento e ataque.
Somente uma continuidade dessas qualidades-movimento em ciclicidade, faz-se possível e sustentável à tecnologia invisível dos fluxos vitais que "garantem" a vida.

Há algo de muito ancestral em ir para frente em consonância com o que está atrás.

Mesmo por meio de mudança transformacional ou destruição espontânea, a ciclicidade impera na natureza transitória das coisas, na mediação da vida e da transfiguração. Ação e ascenção. Decantação após o ápice, repouso que precede os recomeços. A vida morte vida entre presença e ausência, oculto e revelação, visibilidade e invisibilidade, unicidade e multiplicidade, superforma ou subforma, o ente que oscila. O lar peristáltico.

A intimidade e o passar dos dias.
O profundo de nosso coração.
Sua respiração.
Seu cheiro.
Nossas mãos sempre entrelaçadas.
Nossos planos e os destinos.
Nossas vidas para sempre interligadas, cruzadas.

Os medicamentos do corpo físico, e os medicamentos da alma.
O tempo que temos em Gaia.

Agradeço pela honra em ser sua companheira, amiga, por ser sua pessoa, seu amor, seu colo, seu dengo, sua bruxona, por todo cuidado comigo, por todas as coisas, e por essa aventura última, de vinte e dois dias de hospital e todo o experienciar, sobre o que escrevemos juntos aqui nesta Terra.

(carta de despedida)

"Ao meu amor, Alex, e aos nossos amigos (..)

Vivam cada momento presente como um milagre, celebrem e sintam o amor em cada detalhe.

Assim foi como vivemos os últimos dois anos e meio de nossas vidas.

Eu poderia citar tudo que o Alex aprendeu e ensinou: era das artes, bioconstrutor nato, cozinheiro, tinha a receita do pão caseiro mais gostoso (segredo de dona Suzana), andava de skate e ensinava a todos a andar; amava ter tempo, sabia apreciá-lo e desfrutar dele.

Era o melhor guia de cachoeiras e trilhas de Canela - morou nos Alpes Verdes e conhecia tudo de dia ou de noite, com olhos abertos ou fechados, com sol ou chuva - tinha seus esconderijos e cascatinhas secretas.

Alex tirou a carteira de motorista, e assim nos conhecemos, na auto escola. Era o melhor motoboy da Serra Gaúcha, conhecia todas as ruas e era rápido. Bem rápido.
Me levava para todos os lugares, e nosso primeiro rolê foi ir no Sitio Colobri juntos ao chá de bênçãos do Aruã Raoni - ainda na barriga da Brena - nossa irmã.

Alex foi o melhor companheiro para dividir uma pandemia, uma vida na casa da árvore, sonhos, e para sempre será um refúgio seguro que através do AMOR me fez aprender que éramos iguais e verdadeiramente muito parecidos em todas as nossas diferenças.
Por diversas vezes prometemos estar um ao lado do outro para sempre, em todos os momentos e circunstâncias. E assim nos foi concedido. Assim pudemos partilhas desses 21 dias de hospital, que pra gente foi uma reviravolta mas era o início de mais uma grande aventura, juntos. Sempre juntos.

Mas o UNIverso em sua complexidade, sabedoria e mistério, nos preparou para o HOJE.
(tudo nos preparou para o agora)

Sem dor a partir de agora.
Fomos ouvidos e por esse aprendizado - por ser testemunha da misericórdia e unicidade de CRISTO, mônada inspiradora - dou graças.

Agradeço também por tudo que o Alex é, tudo que aprendeu aqui em sua vida no planeta TERRA, por tudo que estava aprendendo a cada dia a SER.

Nosso pra sempre foi muito rápido. Assim como a vida é.

E o tempo, que sempre parava pra nós dois por alguns minutos, parece meio congelado agora. 
Eu vou sentir saudade de tudo, em cada minuto. Mas te amarei em tudo.
E sempre contarei as suas histórias trazendo sua alegria em meu coração.

Quem verdadeiramente te conheceu teve um grande privilégio meu amor.

Vai tranquilo e em paz. Jah te guie pelos caminhos dos novos aprendizados.
E obrigada, por tudo, pra sempre.

Com amor,
Lais (e gatinhos Mário e Maria)"


--

Sinto falta da cor dos seus olhos quando o sol batia neles à tarde.
Sinto falta dos waffles.
Sinto falta de cantar com você.
Sinto falta de dormir e acordar com você.
Sinto falta de cozinhar junto.
Sinto falta de sair para caminhar, e das águas geladas das cachoeiras.
Sinto falta de pilotar com você na minha garupa colocando os pés no chão porque eu não alcançava.
Sinto falta de colher couve, alface, cebolinha e tomates da nossa horta orgânica e supervivencial.
Sinto falta do mosaico de azulejos tortos que você me ensinou e eu coloquei no banheiro.
Sinto falta de dormir no tapete.
Sinto falta da casa da árvore.
Sinto falta dos cachorros.
Sinto falta das trilhas.
Sinto falta de pedalar com você.
Sinto falta da felicidade.

--
No dia sábado seguinte a sua partida terrena, o povo Kayapó e o Coletivo Beture realizou aqui no MAC a exposição "Mekukradjá Obikàrà: com os pés em dois mundos", e o Cacique Raoni, magicamente estava ali, diante de mim, trocando olhar direto, me compreendendo de alguma maneira.




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