COMIDA DO AMANHÃ

Há alguns anos eu acompanho o trabalho da Mônica Guerra - criadora do Instituto Comida do Amanhã - e de tantas outras referências atuais dentro do que eu considero ser um ser coletivo e pensante - responsabilidade de todos.

É louco pensar que falar de comida, ainda mais onde o cenário atual propõe a reflexão sobre as nossas atitudes acumuladas ao longo do tempo, e sobretudo, como atuaremos após o COVID-19, se queremos contribuir de fato ofertando um conteúdo teórico e um exemplo prático que ajude a sociedade a se conscientizar sobre a necessidade de nos reinventarmos como seres humanos, em um momento mundial tão delicado - é falar de formas de mudar o mundo três vezes ao dia. E como fazer.

Hoje, ano novo maia, acordei refletindo sobre como tenho comunicado todos esses pensamentos que me atravessam ao longo dos meus vinte e seis anos.
Fiz uma postagem curta no facebook que informava: 16 mil litros de água = 1 kg de carne.
Eu recém havia pesquisado no google aquela informação.
Pensava se as pessoas sabiam isso. Se eu era a única que estava me dando conta ali naquele momento, que fora toda a questão do especismo e da incoerência em comer outro ser vivo - era absurdamente inviável a quantidade de água desperdiçada num único quilo de carne bovina.
Bizarro.

Nas minhas férias do ano passado, Setembro de 2019, passei quarenta dias entre o Rio de Janeiro e Salvador. 

No Rio, num passado nem tão distante assim, às quartas-feiras, dentro da Fundição Progresso, acontece o Forró da Lapa. E ali estive eu, com toda a latinidade de ser um corpo feminino que baila, e que vive sua afro influência - sem saber de fato tudo o que aquele lugar abrigava.

Queria trazer para vocês essa conexão: eu não sabia, em Setembro, que no centro de cultura mais diversidade da Lapa, existia um projeto, ou melhor dizendo, um festival, que seria pilar de um texto (desses tantos que a gente se pega lendo na pandemia) que faria cair várias fichas aqui dentro.

O Festival Plante Rio nasceu dentro da Fundição Progresso.
E eu, mesmo acompanhando o Comida do Amanhã e alguns outros movimentos voltados para a informação daquilo que a gente come, não fazia ideia disso.

Ontem li um texto que descreve a era industrial como um período de encanto, uma consciência alterada e uma fixação mental como a única explicação pra chegarmos a arruinar nosso ar, nossa água e  nosso solo, causando danos graves a todo nosso sistema básico de sustentação da vida em troca de .. dinheiro.
Baseado no texto de abertura do livro ‘O solo a base da vida em nosso globo’, de Ana Primavesi, do ano 2000. Ana Primavesi, e isso eu também descobri ontem - é uma entidade da agroecologia no Brasil, que completou 98 anos há pouco tempo e em sua fala cita um outro livro: “The dream of the Earth" de um cara chamado Berry (1990). Que trata de que a mente humana se localizou em limites cada vez mais estreitos, que jamais tinham sido experimentados desde que a consciência surgiu na era paleolítica

"Mesmo as tribos mais primitivas tinham uma percepção mais ampla, mais holística do Universo. Era uma visão que se estendia dos espaços siderais até as profundidades do interior do ser humano, sendo muito superior aos parâmetros do nosso mundo tecnológico limitado. Devida nossa percepção se tornar tão limitada ficamos presos num isolamento de espécie que conduziu, por sua vez, a um assalto brutal da Terra, inconcebível em qualquer época anterior.” 

Falar de comida do amanhã é falar sobre como alimentar todo mundo sem veneno. Sem comer bicho morto. Sobre acostumar nosso estômago ao tipo de vida e vegetação que a gente quer ver lá fora. Porque o que a gente come hoje, amanhã, e todos os dias, reflete diretamente no mundo lá fora. A agroecologia não é uma alternativa excêntrica de cultivar o solo, mas a única possibilidade se pretendemos sobreviver em nosso planeta.

Em que lugar a gente está de fato??

A grande pergunta não é como alimentar todo mundo, quando a gente sabe que se produz alimentos para mais de 10 bilhões de pessoas no planeta, e cerca de 40% é desperdiçado.
E não é o desperdício de uma pessoa que está lá na favela, ou na cidade, e não comeu todo o seu prato de arroz e feijão, que vai pro "lixo". 
É um desperdício estratégico, porque quando a gente tem comida como commodities, a oscilação do preço é controlada com esse mesmo desperdício. Logo, é preciso jogar um tomate fora para subir o preço do tomate, então a gente está falando sobre um pseudo problema que a indústria coloca como: “vamos reduzir o desperdício”, mas a gente não está olhando para a essência do problema.

Nesse momento, na situação em que a gente está, com todo mundo que pode em suas casas e com muitos projetos saindo do papel; vemos que em toda a história da humanidade a sociedade sempre passa por uma crise pela qual ao superar em sociedade juntos chega-se a um "novo normal" .. novos paradigmas, novas crenças .. e assim as culturas e as sociedades vão adquirindo novas formas com o passar do tempo.

No começo da agricultura, a gente já sabia como alimentar todo o mundo. As respostas estão na Índia, estão na África, no Brasil, estão no interior de São Paulo, as respostas estão aí há uns 5 mil anos. As respostas estão por todo lado. A questão é filosófica. 

É um paradigma estratégico do que está acontecendo na sociedade que se recusa a olhar para um problema real que está destruindo o planeta e a humanidade. Então, quando a gente começa a se perguntar e nos falam: “ah, mas a gente não vai conseguir alimentar todo mundo” e nos propõe alimentos "impressos numa quantidade infinita" e sem valor nutricional algum, compondo 60% das nossas calorias - isso não faz sentido. 
Nos adoecem através do que a gente come para depois nos empurrarem para que a indústria farmacêutica nos cure. Isso não faz sentido.

"O planeta tem 300 mil espécies comestíveis, o mundo inteiro consome 200, o que significa 0.06% da biodiversidade que existe no planeta. Ao mesmo tempo, todas as práticas tradicionais de plantio, principalmente na China, sustentaram a vida no solo ao longo de mais de 5 mil anos."

Nos últimos 15 anos, nós conseguimos destruir com o sertão. 
A gente conseguiu uma tecnologia tão avançada que em 15 anos destruiu o que há 5 mil existia e isso é considerado: progresso.

progresso
substantivo masculino
ação ou resultado de progredir; movimento para a frente; avanço; fato de propagar-se; propagação, expansão.

?????

Por que isso é considerado progresso? 

A Indonésia, até 1960, na suposta revolução verde, tinha 7 mil espécies de arroz. Eles conseguiram preservar, hoje em dia, 300 espécies e comercializar 30. Quem preservou essas espécies?
Foram os pequenos produtores e pessoas físicas que começaram a plantar em suas casas, porque elas eram perseguidas e ameaçadas pelo governo local por não consumirem o arroz "fornecido" - leia-se autorizado - uma vez que isso não condizia com todas as estratégias econômicas globais.
Então, quando a gente for olhar, não é o arroz que está faltando. 

O sistema produtivo que existe no Brasil é um sistema colonizado. Enquanto a gente não descolonizar a forma como a gente se alimenta nesse país, que é de um clima tropical e de uma biodiversidade inacreditável, e continua a usar o paradigma de alimentação e uma gama de alimentos que vêm do clima temperado do Norte... a gente come o brócolis, a pera portuguesa, a maçã. Mas, cadê o açaí? Cadê a pitanga no supermercado? Cadê as frutas da Mata Atlântica? Cadê a tapioca não empacotada, barata, em todos os estados do Brasil? Cadê as Plantas Alimentícias não Convencionais (Pancs)? Por que elas são ditas não convencionais? Se elas são plantas alimentícias tradicionais na gastronomia brasileira? Cadê o resgate dessas plantas? 

A Amazônia reúne uma das biodiversidades mais ricas e o solo não é tão rico porque é um clima tropical. É completamente diferente, toda a composição biológica é diferente. O solo tem 45 tipos de nutrientes e dentro da agricultura pseudo convencional, é até difícil falar convencional, no momento em que o convencional e o tradicional são completamente opostos O que faz parte do Brasil? A gente tem tecnologias, a gente tem a capacidade, a gente tem a biodiversidade e como continua existindo aquilo que nos adoece? Um colonialismo que era imposto e que agora se tornou parte do ser humano que ele nem se questiona sobre isso. Sobre sua origem. Sobre a origem do mundo. Sobre a origem do seu alimento.
Um colonialismo importado. A gente fica importando a dominação, e isso não faz o menor sentido quando a gente olha um governo que precisa representar os interesses da sua população. Que precisa governar para todes.
#forabolsonaro

"Se a gente começar a pensar sobre o homem que diz que a terra é escassa, essa frase nos diz muito mais sobre a escassez do homem do que sobre a escassez da terra, de fato."

 Nós temos uma questão muito profunda em entender dentro da gente o que estamos buscando, parafraseando a Mônica.

A gente já entendeu que a vida é cíclica? A gente já entendeu que homem e natureza não estão separados? Que cultura e ciência não estão separadas? Que poesia e conhecimento acadêmico não podem estar separados? Que é tudo parte de uma mesma coisa? A gente já entendeu que os cinco elementos que existem no planeta, existem em cinco sentidos dentro do meu corpo? Que eu só enxergo porque tem fogo e só cheiro porque tem ar? Que eu só sinto paladar porque tem água? Que eu só mexo porque tem terra? Logo, se eu não conseguir entender que o meu corpo, que todos os tipos estão diretamente relacionados com o planeta, como é que eu vou poder salvar o planeta sem me salvar? 

Como é que a gente pode entender que nos últimos 15 anos tem uma padronização e uma homologação do alimento que se compara com uma padronização e uma homologação da vida, em que todo mundo quer ser igual? A taxa de aumento de câncer combina com a taxa de aumento da monocultura, que combina com a taxa de aumento da anorexia nervosa nas mulheres. A gente tem um conjunto de patologias sociais, filosóficas que só podem ser sanadas quando começar a valorizar os especialistas dos conhecimentos da terra, que são as mulheres, são os povos tradicionais, são os povos africanos. Como a gente pode transformar isso? O conhecimento está aí, a experiência está aí, ela tem 5 mil anos. A gente já sabe o que está matando e o que não está matando, ainda sim, continuamos fazendo pesquisas para dizer a mesma coisa, o que a gente já sabe. 

Todo mundo sabe que agrotóxico faz mal, todo mundo sabe que agroecologia é importante, todo mundo sabe que todos devem ter direito a comer porque o direito à vida é um direito humano. Ou não?

A comida não pode ser obrigatoriamente comprada, isso não faz sentido nenhum do ponto de vista humano, o direito à água, o direito à terra. 

Precisamos de novas narrativas, falar de ser inteiro, falar de afeto, de conexão com a terra, com o plantio, com a anatomia do nosso corpo, com o poder de cura das plantas mecicinais, falar sobre soberania alimentar, que é vista como um assunto esdrúxulo, em pauta pedagógica. Criança tem que falar com propriedade sobre o que é soberania alimentar e não sabe, nós adultos não sabemos. Nossa sociedade sabe falar sobre YouTubers e não sabe falar sobre soberania alimentar, sobre ter a garantia de comida de verdade no prato. Não sabe que ela tem comida, mas alguém não tem. 

Então, a gente precisa olhar pra isso e tentar entender como a gente faz a valorização de quem cuida da vida, como a gente fala de povos indígenas nas escolas. Como é contada essa história?

Metaforicamente estamos vivendo um inverno. No tempo da terra o inverno é o momento de apostar nas raízes. 

Se começarmos a olhar para os processos todos e como eles existem, a gente pode começar a ensinar para as crianças o tempo que existe no Brasil. Como o tempo é contado de acordo com o clima da Região Norte? Como os índios contam o tempo? Eles contam de acordo com os ciclos da terra. Por que nós somos cíclicos? Por que uma maçã tem infinitas outras árvores dentro dela, e a gente não entende a poesia disso. A gente não entende que floresta se cria. E se cria com diversidade. Que tem que colocar a folha de novo na árvore para conseguir que se ela fique mais forte. Porque tudo é cíclico. Se não conseguirmos trazer pra nossa vida, pro dia a dia, como é que vamos conseguir trazer para a terra, no ponto de vista global? 

São micro revoluções. 

Não vamos buscar respostas colonizadoras para problemas que são resultados da colonização, vamos buscar respostas locais para que a gente consiga resolver isso e consiga entender que só no nível local, da onde eu moro, da microescala, da casa do eu, das minhas relações, do meu pequeno espaço, da minha horta na janela do apartamento que morre no inverno gaúcho, eu vou conseguir fazer o início da transição da transição para a transformação que eu quero ver no mundo.






INSTITUTO COMIDA DO AMANHÃ

https://www.comidadoamanha.org/

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